CR #33: É PROIBIDO APLAUDIR PROFETAS!

Por Apóstolo Jota Moura

“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, apedrejas os que a ti são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e não o quiseste! Eis aí abandonada vos é a vossa casa. Pois eu vos declaro que desde agora de modo nenhum me vereis, até que digais: Bendito aquele que vem em nome do Senhor."

(Mateus 23.37-39)

Todos os caminhos da humanidade estão marcados com pedras: As pedras que serviram para matar os profetas. A história caracteriza-se por um enorme massacre de profetas.

Há, porém, alguma coisa pior do que lapidar profetas: é comemorá-los depois que foram mortos.  Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, que edificais os sepulcros dos profetas e adornais os (túmulos) monumentos dos justos,” (Mateus 23.29).

“As comemorações correm sempre o risco de encobrir desajeitadamente um remorso não aplacado e um álibi persistente” (U. Vivarelli). Não passam de uma manifestação da consciência culpada de muitos.

Ao silêncio covarde de ontem, sucedem os ruidosos falatórios de hoje. À indiferença e à suspeita, seguem-se as comemorações e até mesmo vergonhosas contendas quanto à posse do túmulo. “Neste mundo há quem dá testemu­nho e quem desmoraliza. Logo que um homem dá testemunho e morre, arruína-se seu testemunho com falatórios” (Camus).

Quando era tempo de “gritar do alto dos telhados” e de sair às praças, preferia-se ficar encolhidos na retaguarda, entre os “lansquenetes da ortodoxia”, que atiram nos profetas desarmados, ou então – o que é o mesmo – fazem-nos morrer do coração.

Agora que os fatos demonstraram que os vanguardeiros haviam cometido o único erro de terem razão, alguns decênios antes da maioria, agora que não existe mais nenhum perigo para se sair livremente (sobre os palcos das comemorações oficiais), eis que se dá rédea solta à verborreia oratória e não se faz economias de epitáfios. Aplaude-se, tardiamente, a uma “glória” (e até mesmo chega-se ao despudor de empregá-la como arma apologética contra os “inimigos”: “Vejam? nos trinta anos atrás tínhamos falado claro… fizemos assim…”) na ilusão de fazer com que nosso imobilismo seja esquecido, que não se lembrem de nosso medo e de nossa estupidez de ontem.

É Camus quem ainda se encarrega de liquidar brutalmente esta pegajosa manobra: “Na época de revoluções são os melhores que morrem. A lei do sacrifício faz com que no final escapem sempre os covardes e os prudentes para usarem da palavra, porque os outros a perderam sacrifi­cando o melhor de si.  Falar supõe sempre uma traição”.

Os profetas não precisam que gastemos nossas mãos em aplaudi-los.

Não querem ser trancados em museus. Pelo contrário, exigem que continuemos seu testemunho pautado pela linha da coragem, da lucidez e do sacrifício.

GUIA PARA O HOMEM

“Muitos cristãos que conheço estão se desembaraçando de um espiritualismo que os traiu; por reação querem tornar-se homens comuns, exercer uma profissão comum a todos os homens, não ser tipos excepcionais: certamente acrescentam – como cristãos.

“E quando se faz a pergunta: E o que quer dizer como cristãos? Eu não encontro outra explicação que não está: como profetas, ou seja, como pessoas dotadas de uma luz, de uma perspicácia e de uma visão que os outros não possuem. Caso contrário, o que estão fazendo como cristãos? (A. Paoli).

Um cristão que se embaraça penosamente na realidade cotidiana, que não sabe ver claramente os acontecimentos históricos, que não sabe ser um guia para os homens, é um ser que atrapalha, um inútil.

Ora, ser guia para o homem significa precisamente re­cuperar a própria função de profeta.

A Igreja está “reencontrando a profecia” O povo de Deus participa dos três ofícios de Cristo: sacer­dote, rei e profeta.

Ora, para que o cristão possa desempenhar esta função profética, é indispensável que antes dissipemos certos equívocos bastante comuns.

1. O profeta lê o presente – Um conceito bastante vulgar a respeito do profeta costuma apresentá-lo co­mo um indivíduo estranho, uma espécie de vidente que prevê o futuro. Não, o profeta lê perfeitamente o presente. Possui o sentido da história. Compreendeu o sentido profun­do da palavra de Deus, na contingência histórica em que Deus o chamou como testemunha. É um enviado de Deus para decifrar o fato e captar a revelação de Deus no fato” (A. Paoli).

É tão perspicaz o olhar do profeta, que consegue captar o entrelaçamento das linhas do Reino de Deus com as linhas do reino dos homens.

O profeta “decifra” os fatos do presente. Porque coloca a revelação eterna e imutável de Deus ao ponto de impacto com o acontecimento.

É um homem que compreendeu o passado, não permanece em atitude de defesa com relação ao presente, e está sempre aberto para o futuro.  Dessa maneira, realiza uma vívida conexão entre passado, presente e futu­ro, através da mediação da Palavra de Deus.

2.  É um homem livre – Não está condicionado por oportunismos. Não se deixa pear ao pelas táticas diplomáticas. Não está vinculado por nenhum interesse.

“Assim diz o Senhor a respeito dos profetas que fazem errar o meu povo, que clamam: Paz! enquanto têm o que comer, mas preparam a guerra contra aquele que nada lhes mete na boca. Portanto se vos fará noite sem visão; e trevas sem adivinhação haverá para vós. Assim se porá o sol sobre os profetas, e sobre eles, obscurecerá o dia” (Miquéias 3:5-6).

De acordo com estas palavras, dir-se-ia que muitos são os cristãos que não sabem desenvolver sua função profética, tornaram-se incapazes de gritar, porque encontraram sempre alguém que lhes coloca na boca alguma coisa “para morder com seus dentes”.

O profeta autêntico, ao invés, não conta com “bem-feitores” que o condicionem. Soberanamente livre po­de dizer:

“Eu, porém, com o Espírito do Senhor estou cheio de força, de senso de justiça e de fortaleza, para lançar em rosto a Jacó a sua infidelidade e a Israel o seu pecado” (Mq. 3:8).

Os religiosos, os superficiais, os medrosos, os conformistas, julgam o profeta como um rebelde. Na realidade ele não sabe o que seja racionalizar para agir politicamente, conveniência para alcançar seu próprio interesse, fazer “carreira” para atingir um “Status” na sociedade humana.  Na verdade, ele é livre, mas não rebelde. A sua, afinal, é uma desobediência em nome de uma obediência mais importante: à consciência e a de Deus.

Nele realiza-se um paradoxo que escandaliza apenas os tímidos e os medíocres: capaz de obedecer até à desobediência.

O profeta é talhado no tecido da liberdade e do amor a Deus, seu Reino e Sua Causa.

3. É um homem capaz de dar escândalo – O perigo de dar escândalo foi por muito tempo um espantalho, agitado frequentemente sem motivos, em certa educação cristã.

Sem dúvidas existe um “dar escândalo” que merece as cortantes palavras de Cristo. Seria ridículo igno­rá-lo, mas existe também um escândalo que representa um dever bem definido para o cristão. E isso aconte­ce quando se trata de desmascarar a hipocrisia (especialmente quando ela se esconde sob o verniz religioso), de provocar uma crise na desordem, institucionalizada, de elevar a voz em nome da justiça, do amor, da paz por Jesus Cristo Nosso Senhor.

A vocação do cristão não consiste em ser o guarda da ordem constituída. Não se deve confundir a justiça com a legalidade.

JUSTIÇA E LEGALIDADE

“Nós cristãos devemos exercitar a história e na sociedade esta função eterna que repropõe continuamente a Palavra de Deus ao tempo e provoca crises nas estruturas, nas leis, nas experiências. Daqui nasce a contestação cristã: nós cristãos não fomos chamados para “custodiar” a ordem constituída, fomos chamados para fermentar com o testemunho do Reino.

“Precisamente porque legamos dentro de nós alguma coisa que supera toda experiência puramente temporal, nós repropomos continuamente uma tensão eterna pela qual a justiça torna-se a crise contínua da legalidade. A legalidade é um conjunto de leis constituídas, mas quanta justiça nela existe? Se nós não revermos e não confrontarmos continuamente estas estruturas, estas leis sobre a realidade do homem que se revela, que se manifesta dentro e fora de nós, ficaremos bloqueados, presos pela legalidade. A justiça força prosseguir sempre, não conserva: fermenta, não “aprisiona”, mas liberta!

Andam por aí profetas medíocres que visam apenas o escândalo (e se lançam contra ele com toda a impetuo­sidade da voz e da pena) em certo sentido: o da moral sexual. Tornam-se mudos, ao invés, quando se trata de denunciar outros escândalos igualmente gritantes: Que é escândalo? Fazer amor? Não é muito mais escandaloso defender e proteger a injustiça, porque me falta a inteligência espiritual e profética para descobrir aonde ela se esconde? É certamente mais escandaloso deixar-se condicionar por interesses e não optar corajosamente para conseguir estruturas mais justas, que possas ajudar o advento daquela pessoa humana que defendo e exalto em meus sermões” (A. Paoli).

Um romancista apresenta a mesma exigência: “Fez-se muito barulho, barulho demais por causa das Mulheres que na igreja mostram os joelhos ou os sinais da vagina e muito, muito pouco por causa das armas, da crueldade, da opressão, dos patrões que negam o justo salário aos seus dependentes, das doenças, da infelicida­de, dos falsos ideais nacionais (B. Marshall).

Deixemos que mais um literato nos fale: “Do erotismo, da carnalidade sai-se desiludidos e aflitos, com as cinzas na boca (é a própria natureza que se encarrega disso), enquanto que da cobiça, do carreirismo, da ambição, dos complots financeiros, sai-se carregado de saúde e milhões, saboreando em cada go1fa­da de ar sucos de morangos e de laranjas (G. Morotta).

Os profetas autênticos derem desempenhar a missão de pôr na boca dos integrantes dessa última categoria o sabor da cinza.

O profeta, portanto, é um homem capaz de dar escândalo aos de bom senso. É capaz de gritar contra o escândalo. Contra todos os escândalos.

O profeta faz-nos compreender que o Evangelho é uma força de contestação, não de benção apenas.

4. O profeta sabe calar – É o homem da palavra – uma palavra rude, áspera como uma pedra, que um sinal – mas é também do silêncio. Não fala à toa. Reduz ao essencial suas intervenções. Dessa maneira suas intervenções acabam sempre por serem determinantes, “escandalosas”. Porque brotam do silencio.

Os silêncios do profeta são tão inquietadores co­mo suas invectivas.

5. É um contemplativo – A profecia amadurece na contemplação. E esta é uma verdade que, hoje, muitos cristãos esquecem com facilidade e de boa vontade. O profeta é antes de tudo, um homem que aprende a orar.

Naturalmente que não se trata da oração de caráter essencialmente utilitarista de muitos devotos. E nem também daquela oração, que se faz simplesmente por uma obrigação.

ORACÃO CONTEMPLATIVA.

Pensando bem, ora-se, não para sermos ouvidos por Deus, mas para ouvir a Deus. Ou seja: através da oração concentramo-nos em Deus e descobrimos Seu plano. E fazemos o propósito de atuar nesse plano e de fazer com que seja atuado. “Seja feita a tua vontade”.

“No verdadeiro sentido da oração, não é Deus quem ouve o que se lhe pede, mas aquele que ora, que continua a orar até se tornar ele mesmo o que ouve aquilo que Deus quer” (Kierkegaard).

A oração contemplativa não cria desertores da vida. Pelo contrário, exprime dupla fidelidade: a Deus e ao homem, ao Reino e a história.

“Ha uma oração contemplativa que consiste em volver-se diretamente a Deus para descobrir todos os problemas em Deus, sem separá-los da carga de dificulda­des e de dramas, mas somente iluminados pela luz e pela sabedoria divina que dá uma profunda paz, evitando a apressada e superficial preguiça do homem que busca na oração o privilégio de não ser ator e responsável da história” (A. Paoli).

Por meio do profeta, Deus dirige a história. A oração do profeta poderia ser resumida assim: Eu conto contigo; tu podes contar comigo.

E este dinamismo resolve-se na salvação do homem. Todos são chamados a serem profetas. A questão é des­cobrir os pontos de convergência entre a construção do mundo e o advento do Reino de Deus.

O profeta sacode a letargia e não deixa que a Igreja caminhe rebocada. O profeta tempera a massa e não deixa corromper.

Não é, porém, uma profissão fácil. Defronta-se com desconfianças, hostilidades, incompreensões. Atrapalha-se a caminhada de muitos comparsas que gostam de se empavonar no palco da vida. Não é preciso espantar-se com tudo isso. Como não se deve ficar espantado que agindo assim se acabe por provocar ódio de muita gente. Cristo advertiu-nos com antecedência.

Resta o fato, porém, de que possamos ser assaltados pela dúvida, quem sabe, bem na hora em que as pedradas fervem sobre nos. Surge então a pergunta inquietadora: será que estamos no caminho certo?

O padre Mazzolari, um sacerdote que soube exercer até o fundo a profissão de profeta, deixou-nos uma regra preciosa para nos assegurarmos se estamos no caminho certo:

“Quando não se ganha nada mais que sofrimentos, quando se paga somente pessoalmente, o caminho é certo”. Mas lembre-se disso; o máximo que se consegue matar e manter sepultado um profeta são três dias, pois ele sempre ressuscita no terceiro dia!” Glória a Deus!

(Apóstolo Jota Moura, 04 de abril de 1994)


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